Há tempo foi minha primeira entrevistada, e lá já não poderia declarar que passei a conhecê-la. Para o azar deste perfil, admito, mesmo agora sou incapaz de dizê-lo. Uma chamada entrevista, mesmo longa, é menos que insuficiente para interpretar alguém. Ainda mais alguém que não optou pelo azul, verde ou amarelo, e sim pelo rosa. O que por si haveria de ser um desafio. No entanto, aqui não vou tratar do simples rosa, mas do tom em questão escolhido por ela.

Bom, uma garota de muitos lados eu digo, por qual devo começar? Do direito eu assumo. Foi à minha direita que ela se situou durante toda a conversa, com exceção apenas de um momento frente a frente em uma mesa. Direita é também o lado em que ela passaria para a próxima página, ávida que é como leitora. Em seu grande vocabulário letrado, é capaz de citar uma história que combine melhor com cada lado de sua personalidade. Contudo, um achismo. Não acerca da paixão inegociável por símbolos ordenados em celulose. Achismo sim, que conseguiria adequar seus  livros de acordo a devidos lados da vida. Assumo esse chute ao simplesmente imaginar seu rosto. Em favorecimento ao meu prezado leitor, tente uma face pálida, mas se esforce em um pálido vivaz. Mostrando um sorriso leve abaixo do nariz um tanto arredondado e por cortesia adicione óculos de coruja. Aí está, semblante de livro, englobando o lado que lê e o lado que escreve, este último um talento. No entanto, cedo-o a ela somente. Seria imprudente, como autor deste texto, assumir que em possibilidade futura, o leitor em questão esteja manuseando folhas de papel. Ou mais improvável ainda, que fosse ela a incluir tal humilde bula em seus medicamentos. Optei neste ponto a tratar livros como instrumentos de saúde. Sem amargor ou picadas metálicas. Por vezes tristeza sim, mas em caso extremo deve-se consultar a livraria mais próxima. Obviamente, parafraseando Nina George, livros são mais que médicos. Mas essa lição ela mesmo me ensinou.

Falando de seu futuro, vou arriscar que esteja repleto de compromissos. Tenho uma amiga que diz que as pessoas mais ocupadas são as com mais tempo livre, ao torcer minha cabeça em sinal de dúvida, melhor esclareceu a analogia, faz sentido. Surpreende-me ao tomar nota que a agrada se ocupar tanto, preenchendo seu calendário com obrigações como um álbum de figurinhas. Saiba então, me referindo a perfilada, que estou aliviado que a demora em agendar nosso encontro, tenha em verdade, justificativas. Ao menos me rendeu aqui um parágrafo.

Difícil elencar o que faz em pouco tempo vago, seus passatempos acabam promovidos a responsabilidades. Mas haveria de vê-la com certa frequência, dentro de uma igreja. Pensando solitária com rosto pleno, se é que somos capazes de ver qualquer um a pensar. Digo pleno, se tratando de um detalhe inventado, estaria eu a ser rude conceber qualquer um de cenho franzido em um local religioso. Gosto de acreditar que tem alguém cuidando de mim, ela soou gentil e convicta. Para contradizer o cético que sou, sinto que em alguns momentos existe algo me guiando, disse eu próprio. Relembrando que escrevo a respeito dela, a informação a meu respeito servirá somente como um gancho para a seguinte colocação. Tem uma frase do Saramago que meu pai costumava dizer quando pequena, irei manter o trecho como se sucedeu a desconsiderar as imprecisões, o conteúdo será conservado, algo como o mundo está sempre dando respostas o problema está na demora das perguntas.

Ainda assim, resta demasiado conteúdo. Poderia facilmente imaginá-la dividir um livro com uma xícara, onde felizmente concilia a atenção entre os dois. Dando um gole apenas ao terminar cada página, ou eventualmente cada frase. É costume os parágrafos serem desmembrados ao se encaixarem nas folhas. Ou imaginá-la dançando de meias coloridas em uma sala vazia, ao som da vitrola rabiscando um vinil negro como seus cabelos ondulados. Ou imaginá-la mascarada pela luz vermelha de uma sala de revelação, impedindo minha mente de recriar a claridade de seus olhos, enquanto pendura mais uma foto encharcada no varal. Esse, entre tantos lados dela pertence, ou devo dizer pertenceu, a outro tempo. Mas não crê em outras vidas, apenas deliberou várias possibilidades da mesma, cores básicas são simples demais para ela.

Sinto-me na obrigação de informar mais um detalhe ao leitor. Do meu ponto, danou-se o que em algum momento se tratou de uma entrevista. Mesmo literária, tornou-se uma conversa. A título de comprovação, que animal você seria, uma indagação tola o bastante para se desvencilhar do meio acadêmico. Mas não se engane, não estou a reclamar da sublime mudança de objetivo, em verdade pelo contrário. Vejamos onde quero chegar.

Na sequência a seguir, é válido ressaltar que estávamos sentados nos degraus de mármore, frente ao grande gramado do nosso campus, quase simétricos o suficiente para protagonizar uma cena de um longa de Wes Anderson. Quando me perguntam eu fico tentada a responder leão, daqui ela partiu para os devidos motivos, francamente minha atenção não se volta ao rei dos felinos. Mas vejo o mesmo na borboleta, eis meu holofote, passo a palavra a ela. A mesma imponência, mas de uma forma mais singela, delicada, toda a questão da mudança, de viajar pelos cantos mais lindos e aproveitar as coisas mais efêmeras e passageiras da vida com intensidade. Bela resposta não? Então vou poupar o comentário infeliz, em que enfatizei o medíocre tempo de vida dos insetos. Em seguida, calados como se estivéssemos a organizar qual pergunta atacaria a seguir, planou sobre a cena uma resposta. Moveu as asas. Aqui não arrisco usar bater. Acredite, o próprio verbo projetaria menos silêncio que seu voo. Chegou a dar uma voltinha, ela comentou. Não durou mais que um instante. Mas a essa resposta dada pelo mundo a pergunta já havia sido feita, o tempo aqui não atuou em atraso. Certas coisas não precisam de justificativa, outras, como esta, não devem.

A clarear um último ponto, decidi fielmente ignorar seu talento musical. Pois como as respostas voadoras, desejo ser inaudível. Deixarei aos compositores que decidam cantar ao que diz respeito ao lado melódico que ela ainda possui, soltando notas visíveis somente aos ouvidos, com os finos dedos pulando entre as teclas cor de marfim. Atentei à mudez das palavras a serem lidas e não ditas.  Do contrário ela, não gostaria delas, momentâneas e inaudíveis, mas marcantes borboletas. Será que elas sabem que passam por uma grande mudança e as pessoas muitas vezes as admiram por isso? Do que passa na mente das borboletas nada ei de saber. Mas agora declaro, que ao menos um de seus tons, me referindo aqui a perfilada, passei a conhecer. Não o choque, ou o persa, nem mesmo o fúcsia, mas o magenta.