Um reencontro pelas lentes da infância

 Até meus nove anos, nunca havia tido um motivo realmente pesado para eu estar dentro do hospital, sempre era para prestigiar o nascimento de algum familiar, um motivo para festejar e agradecer acima de tudo.

 Não daquela vez. Daquela vez as pessoas tinham as testas franzidas e os lábios pressionados em tensão, não olhos brilhantes e rostos iluminados com sorrisos ansiosos. Vovô havia sido internado por um problema no coração, eu não entendia exatamente o que estava acontecendo e tudo que eu sentia era saudade de sua presença constante. Nós aguardávamos até que ele pudesse operar, o sistema de saúde público mostrando o quão lento e sofrido consegue ser.

 O ambiente escuro e eu balançando os pés no ar sentada na grande cadeira de metal fria, uma menina insistente ainda que meu pai evitasse que eu ficasse por lá tempo demais. Mesmo tão nova, eu sentia o clima sufocante daquela sala ampla, meus tios revezavam-se para visitar vovô no quarto, mas eu não podia subir até lá, era nova demais. Sensação inesquecível… Vovô era minha pessoa favorita no mundo e já fazia cerca de duas semanas que eu não podia vê-lo. Consegue imaginar como isso soa na cabeça de uma criança de nove anos? Restavam apenas  as orações que a vovó me ensinou a fazer, sempre pedindo para que meu avô voltasse logo para casa e pudesse brincar comigo. Toda noite, deitada embaixo das cobertas, eu juntava as mãos e conversava com papai do céu em silêncio.

 Certo dia, consegui permissão para visitá-lo. Uma médica do hospital autorizou minha subida desde que não me demorasse. Ela me buscou no corredor acinzentado perto da recepção e segurei sua mão macia e gelada enquanto subíamos a rampa até o andar onde ele estava. Meu coração estava acelerado, meus olhos analisavam avidamente tudo ao meu redor: macas e pessoas andando apressadas com expressões vazias. Havia equipamentos médicos nas paredes pálidas, todo aquele cenário assustador demais, um pouco mórbido. Foi como uma eternidade até que ela abrisse as portas de um quarto com várias camas, mas a única que me importava era a que estava ao fundo, a última cama ao lado da janela. -Vovô!

 Minha avó sentada ao seu lado apontou para mim assim que me viu com a médica na porta. Aquela foi a primeira e única vez que vi vovô chorar. Seus olhos brilharam assim que pousaram em mim e ele não foi capaz de se segurar. Fui rápido até perto dele, abraçando-o com cuidado sem entender se ele estava machucado ou não no meio de tantos fios e máquinas, compartilhando de sua felicidade em estarmos juntos novamente.

 Eu fui sua primeira neta, a pequena pestinha que o seguia o dia inteiro, desde ir ao galinheiro cuidar das galinhas ao acordar até a soneca da tarde após o almoço. Ele costumava me levar com ele quando ia comprar comida para seus animais e eu sempre pedia um novo bichinho, muitas vezes o convencendo e deixando minha avó louca quando chegávamos em casa com uma caixa contendo um pato, um coelho ou um porquinho da índia. Acho que o auge foi quando ele apareceu com um cabrito em casa só porque eu queria dar mamadeira para um. 

 Vovô costumava guardar uma caixa de chocolate “Batom” no alto de seu armário e sempre me presenteava com um, ele mal saberia que mesmo depois de crescida aquele seria meu chocolate favorito. O sabor até hoje me lembra minha infância na casa de meus avós, como tudo era tão fácil e bonito.

 Lembro-me de escutar o médico dizer em tom de brincadeira que se ele não se acalmasse teria que me mandar embora de novo enquanto meu avô ainda chorava comigo nos braços. O sorriso em seu rosto ficou marcado em minha mente, o amor e o alívio contidos ali fizeram com que fosse mais fácil voltar para a recepção após algum tempo de conversa tentando distraí-lo do ambiente que eu sabia que ele odiava.

 Ele operou alguns dias depois. A cirurgia foi bem sucedida e logo ele voltou para casa, para sua nova rotina e para mim, que aguardava por ele ansiosamente!

 Até hoje, vovô é uma de minhas pessoas favoritas no mundo e esse texto é a minha forma de mostrar o quanto eu o amo e sou grata por sua presença em minha vida. Seus cabelos e barba branca despertam a criança bagunceira e apaixonada que ainda existe em mim, traz de volta as lembranças da melhor época da vida. 

 Naquele dia, quando o abracei naquela cama de hospital, eu só podia pedir a quem quer que cuidasse de nós lá de cima que deixasse meu avô voltar para casa comigo logo, pois ele era um bom homem e eu sentia sua falta…

 Agora, morando em outro estado e o vendo poucas vezes por ano, a saudade é minha fiel companheira. A memória e a sensação de estar em seu colo me invadem com força total todas as vezes que coloco na boca o chocolate que me apresentou tantos anos atrás. Ele foi meu segundo pai… Não, não meu segundo pai. Ele foi simplesmente o meu avô, foi meu melhor amigo, foi quem voltou a ser criança depois que eu nasci e que aprendeu uma nova forma de amar. Vovô é o sabor do Batom, é o café com leite e açúcar depois da soneca da tarde, é cheiro de galinheiro e a sensação da mão enrugada junto a minha. Ele é parte de quem eu sou.

Vô, eu vou sempre carregar seu ensinamento, seu amor e seu carinho, espero que saiba o tanto que eu te amo e que gostaria que pudéssemos passar mais tempo juntos como antigamente. Adulta ou não, prometo que serei para sempre sua criança predileta na minha essência!  É triste olhar para trás e ver que eu deixei de ser criança, que deixei de caber em seu colo, que não temos mais nossa rotina juntos. Sinto muito, gostaria de poder viver para sempre aqueles dias eternos, mas tive que crescer.