2020, um ano de muitas mudanças. Externas e internas. Ver o mundo onde a lógica do sistema é ir cada vez mais rápido parado é uma daquelas coisas capazes de nos deixar atônitos. É como estou. Aos poucos, o tempo, antes preenchido por ocupações acadêmicas, vida social com família e amigos, abre espaço para um vazio existencial. Quando as aulas vão voltar? Quando poderei ver meus amigos? E minha casa, minha vida em Viçosa como fica? Será que as coisas voltarão a ser normais um dia?

É março de 2020, o início da pandemia aqui no Brasil. O tempo que antes eu não tinha, agora sobra. Quando tudo para é quando passo a olhar para mim: Por dentro e por fora. Percebo pequenos detalhes que merecem mais atenção. Encaro minha imagem no espelho de bordas prateadas que fica na parede do meu quarto. Não me identifico mais. As coisas que me agradam mais são aquelas em seu estado mais simples e natural. Então, por que continuo fazendo isso? O que reflete no espelho são as raízes do meu cabelo crescendo. Percebo que não sei explicar porque o aliso, senão por pressão estética. Cai a ficha de que estou perdida em uma imagem feita para agradar o olhar alheio e não o meu. Seria a pandemia o momento ideal para deixar minhas raízes crescerem e ter meu cabelo cacheado de volta? Esse pensamento, que me atravessa por noites seguidas antes de dormir enquanto encaro o desgastado forro de madeira do teto, ainda é incerto. Quem nunca deixou de fazer algo por medo, insegurança e, pior, por receio do julgamento alheio? Olha, se você que acompanha essa história sempre foi uma pessoa segura, saiba que te admiro muito. 

Transição

substantivo feminino: 1. passagem de um lugar, de um estado de coisas, de uma condição etc. a outra.

Depois de muitos devaneios sobre o processo, inicio a passagem – a transição capilar – de um estado a outro para encontrar minha própria identidade. Desprender-se de uma imagem que a torna aceita com mais facilidade e se aventurar no novo, em que você não sabe exatamente qual será a reação das pessoas (mas que no fundo, por cautela e observação sabe que não será vista com bons olhos) é um processo doloroso. Eu sei que neste caminho que escolhi trilhar, os obstáculos fazem parte. Mas nele também encontro motivação vinda dos laços que mais me fortalecem: As amizades. Além de me encorajarem a continuar com o processo, algumas também iniciam a transição junto comigo. O peso que cada uma carrega sozinha divide-se entre nós e, juntas, nos sustentamos ao longo dessa estrada.

Longos meses se passam, a raiz cresce cada vez mais, vejo meu cabelo surgindo pouco a pouco em sua forma natural (é muito bom senti-lo novamente), mas é difícil manter um penteado adequado com os fios divididos em duas texturas, liso e cacheado. É dado o momento de escolha sobre qual versão de mim permanece. Fevereiro chegou e com ele uma vontade enorme de fazer o Big Chop (processo de corte capilar para retirar toda a parte com química). Aqui dentro, entretanto, ainda mora muita fragilidade atrás da cara de brava que espanta alguns em um primeiro contato. Esse lado frágil abre espaço para inseguranças e uma necessidade de aprovação. Contudo, uma característica maior me predomina: a teimosia. Mesmo vista por alguns como negativa, é ela quem me faz ir até o fim. Afinal, por que parar agora tendo a faca e o queijo na mão, ou melhor, a tesoura e cabelo?

Procuro o melhor profissional da cidade especializado em cortes afro-masculino (o estilo que escolhi é bem “joãozinho”), marco para o dia 3 (é o meu número da sorte) de fevereiro. Parto as 15:30h, para dar tempo de chegar as 16h, o horário marcado. O dia ensolarado com poucas nuvens que me dá a certeza de que estou fazendo a escolha correta.  Minha irmã e meu sobrinho me acompanham, até a praça que fica a poucos metros do salão. O restante do caminho até lá é curto, trilhando-o sozinha, parece eterno. Chego até o local, tímida e apreensiva, é a minha primeira vez nesse lugar. O cabeleireiro está atrasado, homens me olham com certa estranheza (o que essa garota faz em um salão masculino?) A ansiedade me consome, só quero que os ponteiros do relógio parede bem pintada corram rápido, para que ele chegue logo. Dez, vinte, trinta minutos se passam. É sinal para desistir? Não, porque ele chega. Receoso me pergunta se é esse mesmo o corte que quero. Digo que sim, afinal esperei muito por esse momento. Com cautela e delicadeza, ele inicia o corte, me passando segurança. Aos poucos, o som da tesoura nos fios passando, as mechas gigantes de cabelo, uma a uma, caindo despertam um misto de sensações em mim. Enquanto minha sombra no chão de madeira vai gradualmente mudando, eu também mudo por dentro. Finalmente! O barulho da  máquina raspando a cabeça é o som da liberdade.

– Não olha ainda, diz Vinícius, o cabeleireiro.

A curiosidade me domina, mas eu a contenho para poder visualizar o resultado final.- Agora sim, pode olhar! O coração pulsa, minhas pernas tremem, as mãos suam frio. O que vejo no espelho?

Bom, isso só te conto depois…