domingo, maio 19

A música atravessa a Procissão de Santa Rita de Cássia

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Por Abraão Filipe Oliveira e Maria Fernanda Ruas

Além de estampar os rótulos de um doce de leite vencedor de prêmios e de sediar uma das melhores universidades do Brasil, Viçosa também é reconhecida regionalmente por ser referência na realização de atividades culturais, como festivais de música e eventos religiosos. Para os membros e membras da Igreja Católica do município, o mês de maio é muito importante e destinado à realização de homenagens a Santa Rita de Cássia, celebrada, anualmente, no dia 22.

Viçosa e Santa Rita

A relação da cidade com a Santa é antiga. Antes de carregar o nome “Viçosa”, no início do século XIX, quando habitada por um pequeno povoado, o padre Francisco José da Silva, morador dali, fundou um templo católico, onde hoje é a Capela de Nosso Senhor dos Passos. A capela tinha como padroeira Santa Rita e esse movimento foi uma contribuição importante para o primeiro nome da comunidade: Distrito de Santa Rita do Turvo, carregando também o nome do Rio Turvo, que cruza a região.

Com o passar dos anos, a Paróquia de Santa Rita trocou de lugar, mas a fé entre os e as fiéis tem percorrido gerações e pode ser acompanhada todos os anos, durante a festa da patrona. A princípio, é iniciada a novena da santa, com celebração de missas, barracas com comidas, música e trocas. No dia oficial de celebração à Santa (22 de maio), às 16 horas, é programado o início da famosa Procissão, com começo e fim na Praça Silviano Brandão.  

Raquel dos Santos Lima
Pesquisadora Raquel dos Santos Sousa Lima (Foto: Divulgação/ Ludens – Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado)

Raquel dos Santos Sousa Lima, professora de História do CAp-COLUNI e pesquisadora da área de devoções populares, explica: “ao conversar com diferentes fiéis (se referindo às suas pesquisas), percebi que muitos atribuem à santa, Padroeira do município, um papel fundamental na proteção coletiva da comunidade, como um ser especial que conferiria certo sentimento de identidade ao povo viçosense”. 

A pesquisadora conta ainda que, no correr de seu mestrado, ouviu uma senhora afirmar que todo viçosense é devoto de Santa Rita. Para a estudiosa, “esta fala salienta a ideia de que a santa agregaria as pessoas, ou que integraria as pessoas, conferindo um sentimento de pertencimento na comunidade”. 

Ela chama atenção para o fato de que muitos trabalhos sobre o culto aos santos usam uma chave analítica baseada na promessa, se referindo à relação entre santos e devotos, como se ordenada por uma troca interessada entre os fiéis e seus santos. Contrapondo essa ideia, a especialista afirma que, “quando estudamos as devoções populares percebemos que, mais que protetores que garantem sentimento de pertença à comunidade, as figuras dos santos são consideradas como espécies de pessoas especiais, que interagem com seus devotos através de suas imagens tridimensionais, pensadas muitas vezes como ‘corpos’ que portam a presença, e que não apenas ‘representam’ as figuras dos santos”, ela explica.

Música e religiosidade

Yahgo Ferreira Silva
Yagho Ferreira Silva integra o Ministério de Música da Igreja e participou da Procissão deste ano (Foto: acervo pessoal)

Se partirmos dessa dimensão de presença corporal que a procissão é capaz de produzir nas pessoas envolvidas, a música vai carregar um papel fundamental. Yagho Ferreira Silva — coordenador de Liturgia do Santuário Santa Rita de Cássia em Viçosa, membro do grupo Jovens Seguidores de Cristo (JSC) e atuante na Igreja como músico e pregador — percebe que a música nas celebrações é algo imprescindível: “Não há como separar a prática do catolicismo da música, é indissociável a canção dos ritos católicos. Nós rezamos cantando e cantamos rezando. A música foi assumindo grande importância na realização de nossas liturgias ao longo dos séculos. Portanto, a Igreja é detentora de um grande e rico patrimônio musical e sua influência na música sublinha esta íntima relação”, afirma ele.

No caso de uma procissão tão fundamental para a cultura local, como a de Santa Rita de Cássia, esse elemento ganha atenção especial. Os grupos se preparam, se organizam e dedicam corpo e alma especificamente para o momento; afinal de contas, cada detalhe faz toda diferença.

“A procissão de Santa Rita é uma das manifestações públicas de nossa devoção. Entretanto, durante vários dias, para ser mais preciso do dia 14 a 24 de maio, nós celebramos nossa padroeira. Todas as celebrações são embaladas pela música, estas são escolhidas de acordo com a liturgia do dia. Procuramos estabelecer uma ‘conversa’ entre a Palavra de Deus e a canção, a vida de Santa Rita, suas virtudes e exemplos, com aquilo que cantamos. Essas são as orientações gerais para a escolha das músicas, cantar a nossa fé, cantar a liturgia do dia e cantar a nossa devoção em Santa Rita”, diz Yagho sobre o processo de seleção do repertório.

A pesquisadora Raquel Lima chama atenção para o fato de que analisar o papel das músicas no momento da procissão é uma tarefa que requer cuidado, tendo em vista que há múltiplas possibilidades de interpretação dessa manifestação religiosa-artístico-cultural.

Mesmo não tendo se dedicado a estudar com profundidade sobre o aspecto da música nas procissões, ela aponta alguns tópicos, a partir das pesquisas de campo que realizou em Viçosa e Rio de Janeiro (durante seu mestrado e doutorado, respectivamente): “Para começar, vemos a importância da música como elemento ritual que pode se relacionar com momentos de passagem, como na entrada do mundo ritual. É preciso pensar nos significados das músicas e no contexto de sua execução ao longo do cortejo religioso”.

“Além disso, pensando mais especificamente nas festas de santos, é importante dar atenção aos hinos dedicados a eles. A letra do hino de Santa Rita usado na procissão na ocasião de minha pesquisa de mestrado acionava a noção de patronagem da santa, que era louvada como padroeira, e apresentada como modelo de filha, de esposa, de mulher, etc. O hino conta uma determinada história da santa em seu aspecto formal, mas é importante considerar que ele também se configura como uma modalidade de interação com Santa Rita, já que aciona outras múltiplas funções”, explica a estudiosa. 

Em 2020 e 2021, em virtude da pandemia, a procissão não saiu pelas ruas de Viçosa. Nesse período, a Paróquia se adaptou e passou a transmitir as homilias (sermões das missas) no canal do YouTube. Com isso, no período da Novena de Santa Rita, foi possível preparar programações diferenciadas, como lives culturais, entrevistas e apresentações musicais. Agora, neste ano, foi possível retornar com segurança: em um domingo, 22 de maio, dia oficial de celebração à padroeira da cidade, ocorreu a procissão, tendo como ponto de partida e chegada a Praça Silviano Brandão.

Yagho Silva afirma que quem ministra os cantos, tanto nas celebrações litúrgicas, quanto no dia da procissão, são pessoas do próprio cotidiano religioso, ao longo do ano: “São aqueles que compõem a nossa comunidade de fé, gente de muita boa vontade. Geralmente, nas procissões, os cantos ficam a cargo dos jovens, eles animam a caminhada, são alegres e isso motiva a comunidade a cantar e rezar também”.

Além de fazer parte do Ministério de Música da Igreja, Yagho está entre as lideranças do JSC — que é um dos grupos que se encontra mais ativo, após o retorno das atividades presenciais. Por isso, a maior parte do coral que acompanhou a celebração de Santa Rita de Cássia este ano fazia parte do JSC. Eles afirmam que existe uma relação muito frutífera entre a juventude e a liderança da Igreja. Outro grupo que também compõe essa movimentação em torno da procissão é a Lira Santa Rita, que todos os anos acompanha o trajeto. Eles completam, em 2022, seu centenário de existência, como apresenta a linha do tempo publicada aqui, no Nos Trilhos da Música.

Quem participa não esconde a emoção de ser atravessado pela atmosfera que a festa produz. Mais ainda, é nítida a constatação de que a música tem lugar fundamental nisso tudo. Fazer parte desse momento é uma sensação que as palavras não expressam e o que os envolvidos relatam é de o verdadeiro encontro do (en)canto com a eternidade.

“Em palavras, é difícil explicar a experiência de cantar na procissão. Nela, você toca em profundidade a fé das pessoas. Não tem como durante todo o trajeto não se emocionar. A fé dos viçosenses em Santa Rita é muito grande. Por isso, cada gesto, cada lágrima, nos transporta para uma experiência do transcendente, para um encontro pessoal com Deus”, finaliza Yagho.

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