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Redação Analisa| Como os nossos corpos são enxergados

Animações japonesas representam o físico e o equilíbrio com a alma.

Reprodução: Internet

Na animação Ghost in The Shell, adentramos num conflito muito interno da protagonista com o mundo ao seu redor: é necessário pudor ou humanidade em um corpo que não é orgânico? Carregando um corpo androide, ela se coloca numa posição de indiferença muito grande a sua própria nudez ou até mesmo como todas pessoas enxergam ela. Afinal, ela não carrega um corpo de carne e sangue. Mas seu amigo e parceiro continua desviando o olhar toda vez que ela aparece nua, mostrando que, apesar da forma que ela se enxerga ou da forma que o mundo olha para seu corpo apenas como uma máquina, ele ainda considera o corpo dela digno de respeito.

É muito difícil não associar esse dilema a todos os corpos que vão de encontro ao esperado. Todos os corpos de pessoas queer, de pessoas de diversas cores, de outros lugares… corpos que apesar de serem de carne e sangue, também carregam todo o questionamento ao redor do respeito e, principalmente, ao redor do valor. Eles merecem e/ou têm sua existência “validada”? Sabemos, ou podemos ao menos especular, as respostas, mas é forte quando encontramos uma personagem que simplesmente não encontra mais isso em si mesma.

Isso me faz questionar: quantos de nós, depois de anos nessa posição, não olhamos mais para os nossos corpos como algo real? Como algo que nos pertence? Quantos apenas vemos como algo jogado para beirada da sociedade, algo que não importa com que roupa se veste ou como se porta; não faz diferença, é apenas um corpo sem valor e sem humanidade?

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Outro anime que aborda por uma outra perspectiva esse complexo da corporeidade é Blue Period. Ele fala sobre arte e busca por sentido/futuro nas nossas vidas entre o fim do ensino médio e começo do superior, e Ryuji Ayukawa, um dos personagens mais interessantes da trama, nasceu com gênero masculino mas que se veste e se mostra pro mundo de forma feminina. Essa vivência é refletida em sua arte, seu mundo é retratado como algo fluido, porém causa uma relação familiar muito complexa, já que seus pais não o entendem e lhe resta apenas sua avó, aquela que sempre esteve ao seu lado no mundo da arte e como apoio a toda sua identidade. O que, por sua vez, também se torna sua grande prisão, já que existe um medo constante de decepciona-la.

Como enxergamos no anime, nosso corpo e alma são uma mistura e assim criamos nossa identidade, essa persona que apresentamos ao mundo ao nosso redor, que carregamos como símbolo daquilo que nos representa como humanos. Mas essa persona pode acabar trazendo questões muito extremas no nosso cotidiano, ainda mais em relação às pessoas que nos criaram ou cresceram ao nosso redor. Elas geralmente carregam uma visão de quem éramos, somos e ainda vamos ser e, quando nossa personalidade é moldada por nós mesmos e tentamos ser o mais real com tudo que sentimos dentro da gente, há um choque entre essas visões e uma quebra de expectativa que gera muito sofrimento. É como se estivéssemos sendo injustos com todas essas pessoas que nos amaram e agora não são mais capazes de nos compreender, não são mais capazes de nos enxergar.

Novamente, os nossos corpos se encontram invisíveis, tratados como algo irreal, algo maculado, sujo ou um erro, um reflexo de uma alma defeituosa. Mas, em um episódio específico, o protagonista e o/a Ryuji decidem fazer um desenho nu de seus próprios corpos; assim, eles são confrontados pela sua carne e pela sua essência, sendo forçados a enxergar tudo que forma eles como pessoas. Durante cada traço do desenho, eram também forçados a olhar para o medo que vive em suas próprias almas, suas escolhas e erros, suas inseguranças, seus demônios e alegrias. É um episódio que demonstra como nosso físico e essa coisa além que não compreendemos estão entrelaçadas, um sendo reflexo do outro, e como ambos nos pertencem, são apenas nosso, únicos e que nos torna essa pessoa que acorda e dorme todos os dias.

Corpos e existências são ignorados constantemente, e, quando eles atingem espaços que não estão prontos ou abertos para suas diferenças, são atacados para voltarem para escuridão, para que nenhuma diferença seja viva ou seja celebrada. Os efeitos dessa negligência na concepção corpórea do ser, como temos vistos, são diversos e intensos. Continuemos a observá-los, agora com Cyberpunk.

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Nessa obra, acabamos enxergando como a sociedade capitalista pode piorar mais ainda com o avanço da tecnologia e a queda constante da qualidade de vida – High tech, low life – . Mas, também é notável enxergar como os corpos continuam sendo formas de se rebelar. Como ter sua própria identidade e visão – seja na maneira que pinta suas unhas, seu cabelo, na forma de se vestir, de falar, de se comportar, na maneira que seu nome é dito – , se torna uma arma forte em um sistema sujo e frio, como isso se torna necessário na luta constante pela sobrevivência por uma vida que de fato se vive.

Na dissertação Animes e Mangás: A Identidade dos Adolescente de Pablo Rodrigo Santoni, pela Universidade de Brasília no programa de pós-graduação em Artes, o autor defende e nos mostra como o contato com essa forma de arte da mídia japonesa é capaz de influenciar nossas vidas. No momento que entramos em contato com essas representações, essas imagens, histórias e o peso que cada uma delas deixa em quem somos como pessoas, acabamos sendo alterados como indivíduos. Nossas identidades são alteradas ou até mesmo outras camadas nossas que não éramos capazes de reconhecer são encontradas, já que estamos sentindo, e de certa forma, vivendo essas narrativas como se fossemos parte delas.

Todos esses debates que essas obras levantam há décadas, mesmo de suas formas mais sutis, com cenas e seus significados que não precisamos de palavras para compreender a mensagem, falam coisas muitas vezes não tivemos, ou não temos, coragem de falar para nós mesmos. Ainda mais quando vivemos em um mundo que tenta ao máximo nos colocar em caixas de certo e errado, de rosa e azul, de como seu corpo deve ser, de como você precisa se portar, quais sonhos sonhar, quais caminhos trilhar, quais metas alcançar, que identidade performar…É no contato com essas obras, as quais sempre foram e estão sendo cada vez mais ousadas, que muitas pessoas conseguem ser elas mesmas ao verem seus dilemas representados e, com a forma que suas narrativas são conduzidas, suas dúvidas e dores “orientadas”.

Até porque existe uma dificuldade muito grande das gerações mais velhas em saber lidar e compreender que todas nossas vivências também são válidas, ainda que diferentes. Entender a humanidade e naturalidade dessas questões, mesmo com configurações tão alheias as que essas figuras paternas conhecem. Na arte que criamos e consumimos, sentimos nossas emoções incompreendidas; amamos, choramos nos permitimos ‘sangrar’ e sentir nossos corações batendo. Nela estamos constantemente sonhando, e, nesses mundos imaginários que encontramos na tela ou nas páginas, conseguimos encontrar um acalento por nossas almas desesperadas por respostas e afeto.

Arte, de uma forma geral, sempre irá trazer alguma mensagem, lições de vida, uma luz do que precisamos mudar ou que é necessário para criar algum novo caminho. Basta nos mantermos sensível para percebe-las, e, então, elas podem ser transformadoras. Essa é a perspectiva extremamente intimista de quem vos escreve, de uma pessoa que foi tocada pela arte diversas vezes e que nunca vai esquecer do conforto que encontrou com o anime Sakura, a Caçadora de Cartas.

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O Rogher perdido de 12 anos encontra no irmão da protagonista do anime um personagem bissexual e que tem um namorado. Mesmo sem uma cena de beijo, toda construção dos dois é de um casal e eles são canônicos; Toya faz de tudo pelo Yukito, até mesmo desiste do poder de enxergar a própria mãe, e Yukito também fala constantemente do quanto ele ama o Toya e como não existe ninguém mais importante pra ele. Esse anime leve, com falas, cenas fofas e uma naturalidade tão grande com que os personagens se compreendem e se aceitam, demonstrou para mim que não existia algo de errado com meu corpo ou com o meu coração. Não havia nada antinatural com dois garotos se amando, pois é tão lindo como qualquer amor e merece ser celebrado.

Sem que eu percebesse, ele mudou algo na minha identidade e como eu enxergava meu próprio corpo e essência. Essa é a magia da arte ao nosso redor.

Mas esses dois não são os únicos que me ensinaram algo ,já que o par romântico da Sakura, nossa protagonista, é também um garoto bissexual, muito mais jovem e vivendo um conflito interno de não saber lidar com o fato de gostar de meninos e meninas. É mágico ver ele encontrando sua própria forma de paz e compreendendo seus sentimentos pela Sakura, o típico “galã” da história sendo um adolescente comum entrando na puberdade e lidando com uma sexualidade que foge da norma. Uma processo natural sendo representado como tal.

Voltando à discussão mais filosófica, lendo a obra Neuromancer, considerada por muitos como o fundadora da categoria cyberpunk na ficção científica, eu comecei a me questionar: o que realmente nos define como humanos? É a carne? É a alma? É a nossa personalidade? O fato de sermos seres pensantes? Ainda mais em um mundo onde o pudor é perdido, a nudez não é mais uma questão, o corpo é apenas carne que pode ser modificado de diversas formas e que todos compartilham em uma sociedade que a cultura japonesa se espalhou pelo mundo inteiro e mesclou com outras culturas locais. Ler esse livro é como dançar em um sonho esquisito; é belo, surreal, mas você quase consegue tocar, por pouco não é palpável. Em um mundo onde implantes tecnológicos é a norma, onde nossos olhos, braços, genitais, qualquer parte do nosso corpo pode ser alterada, ainda existiria debates ao redor de corpos que são válidos ou não? Estaremos mais próximos de representarmos nossa identidade para o exterior ou apenas nos perdendo no meio de máquinas? Será que existe um limite visível ou nunca teremos uma resposta?

É um livro que demonstra como o senso comum e o preconceito se encontra em constante mudanças com a evolução e alterações das regras do mundo que vivemos, além de demonstrar como sermos originais e únicos é errado apenas pelo medo pelo moralismo enraizado na sociedade no cotidiano, de pessoas que preferem se cegar para o fluxo do tempo e o avanço de todas discussões.

Para terminar esse texto da minha forma favorita, quero fechar essa reflexão sobre corpo e alma reforçando que nossas identidades são únicas e necessárias em um mundo que insiste constantemente em nos ignorar. Apenas existir é uma forma de revolta firme, apenas viver é uma forma de provar que merecemos existir e que vamos continuar existindo. Apenas seja você.

Referências – acadêmicas e literárias, fica a dica! – :

Animes e Mangás: A Identidade dos Adolescente

Neuromancer por William Ginson

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