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“Não reclame, assista!”. O que o cinema têm a dizer sobre o trabalho?

Ser Andrea ou Emily não é uma simples questão de esforço

*O artigo contém spoilers sobre os filmes O Diabo Veste Prada e Desculpe Te Incomodar, porém não é nada que tire a graça da trama para quem ainda não assistiu.

Passamos uma enorme parte das nossas vidas trabalhando ou nos preparando para um dia conseguir um emprego. E nos filmes esse assunto não passa despercebido, são muitas as tramas que giram em torno da relação entre o personagem e o seu trabalho. Sendo algumas um tanto problemáticas, precisamos falar dessas representações e suas influências na nossa percepção de mundo. Comecemos, então, analisando o clássico da década passada: O Diabo Veste Prada. Para contextualizar, a história é sobre Andréa uma jornalista que arruma um emprego na revista de moda Runway como assistente da chefe Miranda e que torna sua vida em um inferno (daí já dá pra entender o nome do filme).

Em uma cena vemos um dos personagens explicar para Andrea a influência da revista na vida de milhares de pessoas seja para as que trabalham lá, quanto para aqueles que nem sabem o que eles fazem, como era o caso da protagonista no início do filme. Mas se a empresa como um todo é tão importante por que apenas a Miranda é devidamente respeitada? A protagonista e inúmeros funcionários permitem que a sua chefe possa ficar horas em uma sala escolhendo cintos sem ter que lidar com telefonemas, entregas, questões financeiras e etc. Só que são eles a sofrerem assédio moral pela dona da Runway em praticamente todo filme o que é uma forma de desrespeito e desvalorização do serviço feito pelos mesmos.

É importante entendermos que essa prática (que é crime no Brasil) não deve ser aceita na vida real independente da recompensa que a subserviência talvez possa trazer. Digo talvez, porque a personagem Emily, assim como muitos brasileiros, também se esforçam muito e aturam chefes horríveis almejando recompensas ilusórias, que em seu caso é a viagem para Paris que nunca chega. 

Enquanto isso em Desculpe Te Incomodar, a desigualdade entre cargos é tratada de outra forma. Na trama, um atendente de telemarketing, o protagonista Cassius, que chega a prestigiada posição de “power caller” é contraposto com os seus colegas que querem realizar uma greve por melhores salários e assistência básica. Ao decorrer do filme o personagem entende que a forma como ele é tratado não exclui as práticas exploratórias da empresa e ele se junta a greve. Assim a obra passa a mensagem de que não é preciso que ocupemos posições altas para termos um emprego digno. Outro ponto importante é a perda de identidade que o mercado às vezes impõe ao empregado e que é representada quando o protagonista que é negro se passa por branco ao telefone para conseguir efetuar mais vendas.

Diferente dessa visão mais crítica e que abraça ações coletivas para melhorarmos de vida, temos aquelas obras que focam na ideia do “self-made”, em que uma pessoa pode alcançar o que quiser com o próprio esforço. Tais quais filmes biográficos como Walt Antes do Mickey, Fome de Poder, Jobs e entre outros. Muitos motivados por essas histórias acabam por se frustrarem quando seu trabalho individual não trás o retorno que esses filmes prometem.

Mas será mesmo que para os empresários dessas biografias foi tudo esforço próprio ou eles tiveram uma ajudinha? No caso da Apple por exemplo, a empresa se beneficiou de recursos financeiros dos fundos governamentais de pesquisa e que sem o apoio não teriam chegado onde chegaram. Enquanto o filme Jobs foca mais no fato deles terem começado em uma garagem. Ajudas assim nem todo mundo consegue, e esse é um dos casos em que a realidade dessas pessoas difere muito da nossa. Alongando mais no assunto, nenhuma das obras citadas abordam problemas que são reais para minorias como racismo estrutural, desigualdade de gênero ou preconceito com deficientes, que fazem a diferença no mercado de trabalho.

Vale esclarecer que o objetivo aqui não é desmotivar ninguém, você pode continuar buscando por sua carreira de sucesso e assistindo Diabo Veste Prada (que eu inclusive gosto muito). Porém temos que ter em mente que filmes não abarcam todas as realidades, além de refletir sobre quais esforços os protagonistas enfrentam que são realmente justificáveis no ambiente de trabalho.

Referências:

O Diabo Veste Prada’moral, à luz do filme ‘O Diabo Veste Prada’

Taxpayers Helped Apple, but Apple Won’t Help Them (Pagadores de impostos ajudam a Apple, mas a Apple não vai ajudar eles)

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