Quando séries de televisão perdem cada vez mais o prestígio, Ruptura nos lembra como uma boa série se parece
Temos um problema. Em algum momento entre os anos 2000 e os anos 2020, as séries de TV decidiram que não queriam mais ser séries de TV e sim longos filmes. Isso impacta na distribuição, pois agora todos os episódios são lançados de uma vez só, no tamanho, agora reduzidas a oito episódios na média, e, principalmente, impacta no formato.
Parece que as séries se esqueceram que são séries. Elas agora são filmes divididos em oito partes, que você assiste tudo de uma vez só, e, sinceramente, muitas vezes elas nem tem conteúdo suficiente para isso tudo. Por isso, Ruptura, lançada em 2022 e produzida pelo serviço de streaming da Apple, parece uma volta ao modelo clássico das séries dos anos 2000. Apesar dos poucos episódios (que até poderia seguir o padrão de uns vinte episódios, vai), a série tem tudo o que uma boa série deveria ter.
Ruptura conta a história dos funcionários da Lumon, uma empresa que criou uma tecnologia capaz de separar as memórias pessoais das memórias do trabalho. Apesar dessa ferramenta ser vendida de maneira positiva (quem não gostaria de não se lembrar de nada do trabalho e ainda assim receber o salário no fim do mês?), ela cria uma questão central para a série: como lidar com parte da identidade que fica presa eternamente no trabalho, sem férias, final de semana, feriados, benefícios? É possível escravizar a si mesmo? Quem são essas pessoas que só existem nos escritórios da Lumon?

Os personagens são a alma da série.
Ruptura conta com quatro personagens principais: o protagonista Mark S (Adam Scott), Helly (Britt Lower), Dylan (Zach Cherry) e Irving (John Turturro). Esses quatro são funcionários do setor de Refinamento de Macrodados da Lumon, e só existem no andar de ruptura do prédio. Fora de lá, seus “externos” vivem sua vida cotidiana fora do trabalho.
É impressionante a habilidade de Ruptura criar personagens fantásticos. O quarteto principal funciona muito bem, tanto em grupo quanto sozinhos. Mark (tanto sua versão externa quanto sua versão interna) é um protagonista muito interessante, e suas ações condizem com todos os conflitos apresentados ao longo da série. Ele decidiu fazer a ruptura após a morte de sua esposa Gemma, e isso diz muito sobre quem ele é. É entendível a Lumon ser tão obcecada por ele: Mark e Mark S são duas pessoas completamente diferentes, que inclusive se apaixonaram por pessoas diferentes e cada um vai lutar pelo seu próprio interesse. Mark é a prova de que o procedimento de ruptura funciona, e até mais do que deveria.
Mesmo entregando um bom protagonista, Ruptura não deixa de lado seus outros personagens. Helly R e sua versão externa, Helena Eagan, são personagens complexas e com uma profundidade difícil de se aventurar. Apesar de Helly ser uma revolucionária no andar de ruptura e Helena ser a própria filha do CEO da Lumon e o futuro da empresa, ambas são lados da mesma moeda. O espírito provocador e radical está dentro das duas, porém apenas Helly tem a liberdade de colocá-lo para fora. É engraçado notar que apesar da versão interna estar presa num andar de um prédio, ela ainda é muito mais livre que a versão externa.
Com o relacionamento entre Mark e Helly crescendo, a série logo juntou os outros dois protagonistas, Dylan e Irving, em uma dupla. E esse formato funcionou bem. Apesar dos dois não terem tanto espaço de tela quanto Mark e Helly, eles têm suas próprias narrativas e são personagens bem completos. Dylan, talvez o lado mais alívio cômico do grupo, também tem suas próprias questões. Após ter um vislumbre da vida do seu externo, Dylan começa a questionar sobre seus direitos como interno e começa a ter uma relação interessante com seu externo.
Irving inicia sua história na primeira temporada como um grande fiel de Kier e da Lumon, e termina seu arco na segunda temporada afogando a filha do CEO. Ele é agora um revolucionário, e isso porque a Lumon não consegue destruir algo que radicaliza o homem: o amor. Irving ama, e, por isso, ele odeia a Lumon.
Todas as narrativas de Ruptura sempre voltam para esse mesmo tópico: o amor é o centro da série.

Para além dos quatro principais, é impossível não comentar sobre os outros personagens de Ruptura. Já é algo incrível conseguirem entregar quatro personagens principais tão complexos e interessantes, mas a série vai além e entrega personagens secundários tão bem desenvolvidos quanto.
Uma coisa que Ruptura sabe fazer maravilhosamente bem é saber sumir com seus personagens. No primeiro episódio da temporada, acompanhamos apenas os internos e como seus conflitos se desenrolaram após os eventos da season finale. Apesar da ansiedade criada no público em querer saber o que aconteceu com os externos, essa falta nunca é sentida ao longo do episódio. A mesma coisa para o próximo episódio, que nos mostra apenas a realidade dos externos.
Apesar dos grandes acontecimentos do sexto episódio, a série não perde seu ritmo quando decide afastar a história principal da tela, e abordar as histórias de outras personagens no lugar. Esse é um problema grande em muitas séries, como, por exemplo, The Walking Dead, que tinha dificuldades em alavancar episódios que fugiam do núcleo principal. Ruptura nos mostra que é sim possível desenvolver diversas histórias em um único show.
Precisamos falar sobre Gemma. E sobre o episódio de Gemma, que é o meu favorito de toda a série. Mas, para evitar spoilers da segunda temporada, vamos para o simples: Gemma é fantástica. Apesar de a conhecermos tão pouco, é totalmente compreensível Mark ser tão apaixonado por ela. Em um episódio de 50 minutos, Ruptura se provou capaz de criar personagens únicos e desenvolver sentimentos de afeto nos telespectadores. Todo o meu carinho pela cineasta Jessica Lee Gagné que dirigiu esse episódio belissimamente bem.
Outra personagem que também ganhou seu próprio episódio é a Cobel. Uma vilã até um pouco caricata no começo da série, que foi ganhando suas próprias trajetórias e complexidades do passado até tudo ser revelado no oitavo episódio. Cobel nada mais é do que uma menina que foi roubada e desvirtuada pela Lumon.
Um dos personagens mais emblemáticos da série é, sem dúvida alguma, o Milchick. Agora chefe do andar de ruptura, Milchick precisa lidar com questões diferentes do que estava acostumado quando era apenas um funcionário da Cobel. Ele faz parte da administração da Lumon, mas no fundo, ele não faz parte de verdade. Isso fica evidente quando a sua parabenização pelo seu trabalho é um presente de muito mal gosto: os quadros de Kier representados como um homem negro.
O racismo é peça fundamental da história contada na Lumon. Apesar de no andar de ruptura parecer não haver nenhuma estrutura racista, Milchick é lembrado constantemente pelos seus superiores que, fora dali, Milchick é um homem negro. E deve agir e falar como eles acreditam que um homem negro age e fala. E ele pode até ser um bom chefe de setor, mas ele nunca será nada além de um homem negro. E, de maneira angustiante, acompanhamos o sofrimento de Milchick em tentar se adequar a um espaço que mostra constantemente que o odeia.
Até um dos momentos mais lindos da temporada, que Milchick finalmente coloca para fora suas dores em um simples “Consuma excremento”.
É lindo como Ruptura é capaz de dar vida aos seus personagens, torná-los tão humanos e vividos. E poder acompanhar o desenvolvimento de personagens ao longo de vários episódios de várias temporadas é o que faz uma série ter um apelo tão único.
Uma boa série é feita de experimentações.
Outro ponto muito interessante para mim é que o diretor Ben Stiller não tem medo de inovar. Acho que a graça de uma série é que ela não precisa ser tão fiel a si mesma quanto um filme, afinal, as temporadas vão saindo ao longo dos anos e todas as pessoas envolvidas na produção mudam um pouco também. Então por que não experimentar coisas diferentes na série?
Eu acho incrível a decisão de dirigir as cenas no mundo “real” e as cenas no andar de ruptura com câmeras diferentes. Essa fotografia ajuda a diferenciar visualmente os dois mundos, e portanto, as duas pessoas que existem dentro do mesmo personagem. Ruptura também utiliza esse mecanismo com o som, pois um barulhinho de elevador toca toda vez que a troca acontece (mesmo quando ninguém está num elevador).
Esse jogo de câmeras, luzes e sons aparecem por toda a série, e contribuem ativamente com a forma que a história está sendo contada. As luzes vermelhas piscando nos corredores brancos da Lumon são angustiantes e passam a sensação de aflição em quem assiste. Até que vemos Mark S e Helly R correndo juntos como um casal apaixonado, e essas mesmas luzes, agora ao som de “The Windmills of Your Mind”, trazem um aspecto de romantismo, quase parecendo um túnel do amor num parque de diversões.
Essa brincadeira com as luzes também acontece nas cenas de celebrações, especialmente no último episódio, com a banda de fanfarra. O alto contraste e as luzes coloridas dão a sensação de algo fantasioso, onírico, quase assustador e totalmente sem sentido (me lembra muito aquela cena de Dumbo). Afinal, nada na Lumon faz sentido.

Ruptura segue sem próprio tempo, e precisamos respeitar isso.
Ruptura é cheia de mistérios. E esse é um dos seus pontos altos e que contribuiu com o sucesso da série. Em plena pandemia, a internet foi invadida por teorias de fãs sobre o que está acontecendo na Lumon e sobre o futuro dos personagens e por análises minuciosas de cada detalhe em cena. Esse turbilhão de perguntas ainda não respondidas podem gerar frustração (as comparações com Lost, de 2004, sempre aparecem), mas eu genuinamente acredito que Ruptura sabe para onde está indo.
Antes de tudo, precisamos pensar na nossa nova maneira de consumir filmes, séries e conteúdos no geral. É tudo muito imediato, rápido, fresco. Queremos respostas para ontem, não conseguimos mais apreciar as dúvidas que pairam ao nosso redor. Ruptura está apenas em sua segunda temporada, e sabe-se lá quantas temporadas serão no total. A série não tem a menor obrigação de responder tudo agora (ou nunca).
Vale lembrar que Ruptura não é uma série de mistérios. Eles são importantes na construção da narrativa, e é muito interessante descobrir pouco a pouco mais sobre esse universo que nossos personagens favoritos vivem. Talvez um detalhe ou outro se perca ao longo da série, e tá tudo bem. A grande temática da série é o trabalho, e como lidamos com as relações de poder laborais. Mais do que uma ficção científica, Ruptura é um teste do quão longe a capital iria para separar o trabalhador de um ser social, como se não fossem o mesmo ser humano. É uma distopia da luta de classes sendo atravessada por uma tecnologia inovadora.
Esse texto já está enorme, e acredito que as questões trabalhistas de Ruptura merecem um texto por si só. Mas concluindo esse tópico, Ruptura tem seu próprio tempo para contar sua história, e nós como telespectadores deveríamos aceitar e respeitar isso. Afinal, mesmo que boa parte dos mistérios fiquem sem resposta, a série nos trouxe uma boa história mesmo assim.

Outro grande pilar da série é seu apelo visual. Tudo é facilmente reconhecível e replicável. O visual dos personagens é bem marcante, esse cenário meio atemporal meio oitentista porém futurista da Lumon é muito significativo, e até mesmo a trilha sonora é grandiosa (a música tema de Ruptura tem potencial para bater de frente com o tema de Arquivo X, hein). Esses visuais muito bem trabalhados são fundamentais para uma série se estabelecer no imaginário popular a longo prazo. Pense em Stranger Things, por exemplo. Sem o visual marcante da Eleven, a série provavelmente não teria sido tão grande quanto foi em 2016. E a Apple TV sabe disso.
Ruptura também conta com um roteiro afiado, e é responsável pelo melhor cliffhanger que eu já assisti no final da primeira temporada. A série sabe passear também pelo drama e pela comédia, sendo irresistível e impossível de parar de assistir.
Ufa! É impossível falar pouco sobre Ruptura. Diante de tantos pontos positivos, só nos resta torcer por uma ótima terceira temporada.