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O poder de simplesmente ser má

É preciso ressignificar a ideia de vilania. Qual é a verdadeira diferença entre o vilão e a vilã?

Não é novidade nenhuma que os vilões têm tomado cada vez mais espaço no gosto do público. Mais do que nunca, esses personagens vêm sendo criados para serem amados tanto quanto odiados. Eles têm histórias, força e motivos suficientes para serem considerados protagonistas; mas eles realmente são sempre eles. Sejamos sinceros, quantas vilãs (femininas) você conhece? Poucas? Provavelmente sim. Agora, dentre essas poucas, quantas delas já chegaram ao patamar de protagonistas ou de pelo menos se igualarem aos protagonistas? Aposto que menos ainda, não é? É por isso que no texto de hoje falaremos delas: mulheres vis.

É incrível a quantidade de personalidades e os vários níveis de importância que as mulheres poderiam ter dentro de uma narrativa. Entretanto, estamos acostumados a ver personagens de grande potencial sendo subvalorizadas em seus papéis o tempo todo. As personagens femininas (de forma geral) aparecem sempre de forma redutora no mundo ficcional e possuem, basicamente, três perfis: mocinhas indefesas à espera de seu herói; vilãs sem escrúpulos feitas para provocar a masculinidade dos heróis; ou ainda a heroína, com superpoder ou não, que geralmente é jovem e bela. Seja qual for a posição escolhida, uma personagem feminina jamais deixará de ser sexualizada.

As vilãs talvez sejam aquelas que mais sofrem com a sexualização dentro do mundo cinematográfico, em especial naqueles filmes que são considerados “masculinos”, como é no mundo dos super-heróis, por exemplo. Em roupas sensuais e com discursos cheios de piadinhas de duplo sentido, essas personagens acabam se parecendo mais com um alívio cômico completamente baseado em um olhar sexista do que com alguém que pode realmente oferecer perigo à sociedade. Sem contar a tentativa de reprodução de padrões de comportamento predominantemente masculinos que são estrategicamente colocados ali, não para fazer com que elas pareçam ameaçadoras, mas simplesmente loucas.

Além de serem construídas para satisfazer fantasias sexuais masculinas, as mulheres fictícias também sofrem por ainda não conseguirem se desvincular de uma figura masculina. É como se um homem sempre precisasse ser o verdadeiro motivo de suas ações. Ela é a vilã porque não suporta ver o homem que deseja com outra mulher; ela é a vilã porque disputa o poder com algum homem, ou, o mais clássico de todos, ela nem sempre foi a vilã, ela costumava ser pura, inocente, feliz até que alguém (um homem) lhe machucou física e psicologicamente ao ponto de lhe transformar em vilã. Uma mulher não tem o direito de ser má, pelo simples prazer de praticar o mal. À ela é negado o desejo pelo poder, a psicopatia, o ódio que é tão característico dos vilões masculinos (características essas pelas quais, muitas vezes, eles são admirados).

A “nova” Malevóla é um claro exemplo de uma vilã que era uma mulher boa e inocente até ser traída pelo homem em que confiava e ter suas asas arrancadas (metáfora para estupro). (Reprodução: Internet)

Se engana quem acha que todos esses aspectos nada mais são do que coincidências. Pelo contrário, tratam-se de representações de uma visão do mundo, na verdade, apenas de uma visão: a ótica masculina. Elas são escritas por homens. Todas elas escritas pela mente de alguém que nunca viveu na pele o que é ser mulher, nunca conheceu seus desafios ou viu o mundo do ponto de vista feminino. Carregados pelas noções que o senso comum tende a associar às mulheres, eles as criam como “vilãs destruidoras de relações amorosas, movidas pela competição feminina e pelo desejo de vingança”. Nas palavras de Tereza Virgínia, professora de Letras da UFMG, “convenhamos, na sua maioria, estão sendo escritas por homens, algumas com parcerias femininas, mas… Vilãs guerreiras, sem culpa e com sucesso, estão mais lá na Antiguidade, ou bem ocultas, no seio familiar. Ao contrário, os vilões masculinos – por exemplo, o Coringa, do Batman – continuam a impor respeito, são dignos e atemorizantes”.

Durante uma matéria para O Tempo, a professora Tereza fala muito sobre como as vilãs eram vistas de maneira diferente nas narrativas clássicas: mulheres cruéis e indomáveis. Medeia, por exemplo, já em sua época, rompia os parâmetros para se pensar a representação feminina em uma construção carregada de traços de vilania.

Em sua história, após ser trocada por outra, tomada pela desilusão e pelo desejo de vingança, Medeia decide matar os dois filhos que eram resultados do matrimônio com Jasão, que a abandonara. “(…) [A]inda que no papel da mulher abandonada, trocada por uma mulher mais jovem, a reação de Medeia faz ouvir a voz idealizada de uma mulher emancipada”, afirma Tereza. A acadêmica completa: “ela iguala a relação entre os gêneros, age com lucidez e, ao mesmo tempo, com paixão guerreira e aniquila seu adversário. No final da tragédia, ela sai resplandecente de cena, no carro de seu avô, o Sol, olha para o ex-marido vencido e diz algo que, modernamente, podemos supor que qualquer mulher gostaria de dizer ainda hoje para alguém que a abandonou: ‘Fica no mundo, envelhece e desaparece no esquecimento; eu, como uma deusa, saio de cena por cima, busco uma peça melhor!’”.

Usando como exemplo as obras de Shakespeare, conhecemos Lady Macbeth, que agindo de forma extremamente manipuladora consegue convencer o marido a matar o rei para tomar o poder, “ela é a grande articuladora da trama. Tem a mente sórdida. É um ser que pensa na sombra, faz intrigas, promove inverdades”.

Essas e várias outras personagens são más não apenas para serem vistas como objetos sexuais, mas porque a maldade lhes traz poder. “Podemos ver nelas as mulheres do século XXI que estão chegando ao poder que, exercido nas mãos delas, pode ser tão cruel quanto pelos dos homens. Poder é poder. Não se faz com bondade”, é o que também afirma o diretor Pedro Paulo Cava.

Entretanto, mesmo que criadas por renomados autores clássicos, não deixam de ser homens falando no lugar de mulheres. Idealizações masculinas da mente feminina. “Até aí, que bom que falaram e fizeram delas protagonistas, mas, ainda assim, elas continuam sendo plasmadas pelos homens, os deuses da palavra”, pontua Tereza Virgínia.

Daí a importância de consumirmos e, principalmente, apoiarmos o trabalho de mulheres que trazem à vida outras mulheres. Autoras, diretoras, roteiristas que, mais do que qualquer homem, são capazes de criar vilãs e protagonistas com histórias fortes, interessantes e pautadas em quem realmente nós, mulheres, somos. Porque sim, a mistura entre mocinhas e vilãs é o que constrói a nossa personalidade. Entender a importância da mulher em meio à violência, ao macabro e ao sórdido é reconhecer que o feminino é forte o suficiente para estar em qualquer cenário que deseje. Sua representação deve então ser feita de maneira a mostrar o poder que temos, para que vilãs sejam também espelhos nos quais o público feminino possa se enxergar, muito mais do que o público masculino se deliciar. 

Harley não é menos sensual em Aves de Rapina, ela só não é objetificada. A diferença? Um dos filmes é feito pelo olhar masculino e o outro é dirigido por uma mulher, Cathy Yan. (Reprodução: Omelete)

Encerro esse artigo, expandindo a voz de Gillian Flynn (autora de livros como Garota Exemplar e Objetos Cortantes, que inspiraram famosas obras cinematográficas). Após ser acusada de misoginia por causa das vilãs de suas obras rebateu às críticas em seu site, dizendo que seu objetivo é dar voz à violência feminina, tão pouco retratada na história da literatura, e mostrar que mulheres também podem ser más. “Já me cansei das heroínas determinadas, das corajosas vítimas de estupro e das fashionistas à procura de autoconhecimento que aparecem em tantos livros. Lamento especialmente a falta de vilãs femininas — boas e potentes vilãs femininas”. Nós também queremos essas vilãs.

Fontes:

A Marca da Maldade

Em Defesa das Vilãs

Veja também:

Pássaros quebrados: estamos acostumados a machucar mulheres?

Por que as mulheres matam | Uma série para curar o mau humor

Crítica: Viúva Negra (com spoilers)

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