Cisne negro, dirigido por Darren Aronofsky, é um numa longa lista de obras sobre mulheres competindo por um mesmo lugar.
Nina (Natalie Portman) é a doce, gentil e tímida filha de uma bailarina aposentada que compartilha com a mãe, a superprotetora e controladora Erica (Barbara Hershey), a profissão. Após crer que obteve uma demonstração do lado disruptivo da garota, o diretor artístico de um balé, vivido por Vincent Cassel, a escala como a personagem principal de sua montagem do clássico O Lago dos Cisnes, balé dramático do compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovski. A peça conta a história da princesa Odette que, amaldiçoada e vivendo como cisne branco de dia, e garota humana de noite, deve competir com sua imitadora e cisne negro, Odile, pelo amor do príncipe Siegfried. A jovem vive na esperança de que este jure seu amor por ela e quebre sua maldição. Sendo superada pela inimiga e sucumbindo à tristeza, a princesa se mata ao final do drama.
Visto que a bailarina deve interpretar tanto cisne branco quanto negro, o diretor Thomas exige que, ao dançar, Nina demonstre e revele não somente o seu lado puro, inocente, mas também o seu lado sedutor, maligno. Controlada pela mãe, pressionada pelo diretor e consumida pela rivalidade com a também dançarina Lily (Mila Kunis), que, Nina acredita, tenta roubar o seu papel, a personagem vivida por Portman se perde numa realidade em que o que é ficção e o que não é se misturam. Se perde num mundo em que o conto de fadas reflete os eventos que ela vive. A bailarina se deixa levar pela paranoia motivada por uma busca pela perfeição.

Em algumas cenas do filme dirigido por Darren Aronofsky, observamos a presença de um duplo, uma cópia fisicamente igual a Nina, seu espelho. Este representa seu subconsciente, todos os desejos e vontades que ela reprimiu ao longo da vida, seja por influência da mãe controladora, seja pelas pressões que enfrenta no ambiente de trabalho. Tanto a pressão enfrentada na busca pelo sucesso como bailarina quanto o controle de Erica estão intimamente ligados, já que a mulher desconta na filha a frustração por ter tido de abandonar a carreira e vê na jovem a sua redenção.
Enquanto a dançarina usa vestimentas em tons claros, está sempre de cabelos presos e tem o quarto rosa decorado com bichos de pelúcia, seu duplo mantém os cabelos soltos, usa roupas escuras e aparenta ser confiante. Essas características o duplo compartilha com Lily, que é a personificação das inseguranças da personagem de Natalie Portman. A dançarina, que serve como a rival de Nina na narrativa, possui a sensualidade e demonstra, em suas performances, a liberdade que a protagonista almeja ser capaz de performar.
Em obras literárias como O Duplo, escrita por Dostoiévski, e O Homem Duplicado de José Saramago, a personagem central se depara com um gêmeo não-biológico que representa aquilo que o protagonista é, mas não aceita ser. A cópia é tida como uma ameaça e, eventualmente, um deve ceder lugar ao outro. Em Cisne Negro, uma cópia imaginada que representa as ambições da personagem principal é confundida com a figura real da rival. Em uma das cenas do longa-metragem, a face de Lily se mistura ao rosto da cópia de Nina. É a partir dessa cena que Nina começa a confundir as ações de Lily com as suas próprias, com as de seu duplo. É o seu subconsciente vindo à tona.

Sobre as obras que inspiraram o roteiro do filme, que tem argumento de Andres Heinz, Aronofsky menciona o romance de Fiódor Dostoiévski e o longa-metragem A Malvada de 1950. Este último exemplifica uma propensão de, no cinema e na televisão, se criar narrativas sobre o embate entre figuras femininas. No caso do filme da década de 50, esse conflito se dá através das personagens Margo (Bette Davis), uma atriz veterana, e Eve (Anne Baxter), uma atriz iniciante. A mais velha vê na jovem um espelho de quem ela era no início da carreira, enquanto Eve planeja roubar os papéis, os amigos e o noivo da ídola. Como nas outras obras mencionadas, uma termina por vencer a outra no final. Em A Malvada, Margo perde a relevância e Eve ganha. Em Cisne Negro, Nina é ovacionada após fazer a performance perfeita (a tal ponto que não se incomoda com a morte) e Lily é morta (numa alucinação).
Essa vontade de criar histórias sobre a rivalidade feminina, histórias que englobam as narrativas que tratam do medo de sermos substituídos e do outro que é paródia de quem nós somos, fomos ou gostaríamos de ser, é sintoma de um discurso que nós, como sociedade, ajudamos a propagar: o de que toda mulher é ameaça para as outras.
Seja no filme de Darren Aronofsky, na animação Perfect Blue, nos longas A Morte Lhe Cai Bem, A Favorita e O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, na série Feud: Bette and Joan ou na novela Celebridade, escrita por Gilberto Braga e versão brasileira do clássico de 1950, duas mulheres disputam por um espaço que poderia ser compartilhado ou se deixam levar por intrigas instigadas por homens que se beneficiam de suas disputas, seja profissionalmente e financeiramente, ou amorosamente e emocionalmente. Disputam e não percebem que possuem mais em comum do que imaginam. Nina, por exemplo, vive um momento de libertação com Lily que a influencia a enfrentar a mãe exigente, mas logo volta a ficar paranoica, o que a faz crer que a outra dançarina tenta de tudo para substituí-la. Esquece das gentilezas feitas pela garota e se agarra a suas ações dúbias, cedendo às manipulações emocionais do diretor Thomas.

Nosso interesse por essas narrativas sobre mulheres disputando um mesmo interesse romântico, poder político, fama e sucesso ou o amor de pais e mães que negligenciam os próprios filhos (apresentem-se elas no cinema, nas séries da HBO ou nas novelas da Globo), pode partir de uma vontade de compreender esses comportamentos destrutivos ao quais nos submetemos. Temos vontade de entender o porquê cedemos a esses discursos que visam proteger o status quo ao invés de abandonar os preconceitos paranoicos e sermos um pouco mais gentis uns com os outros. Talvez seja possível dançar O Lago dos Cisnes sem se destruir pelo caminho. Talvez seja possível compreender quem somos e o que queremos sem sangrar. Talvez não seja e, se não for, não há razão para querer dançar tão perfeitamente.
Cisne Negro é o filme destaque na sessão de maio de 2025 do CineCom, no dia 18 (domingo). O longa está disponível no Disney+ e mar afora.
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